Mutirão retifica nomes e assegura identidade de travestis e transsexuais
Como o procedimento feito diretamente no cartório não é tão simples (a lista de documentos exigidos é extensa) e nem sempre é barato (custa em média entre R$350 a R$ 400), a ação visa não somente facilitar a vida das pessoas transexuais que desejam alterar o nome e gênero de registro em sua documentação de nascimento, como também vai acompanhar e custear a certidão de tabelionato de protestos
Ter o próprio nome em documentos de registro civil é algo tão comum que a maioria das pessoas sequer imagina a luta de muitas mulheres e homens transexuais e travestis para conseguir retificar seus nomes e assegurar o direito a uma identidade plena. Justamente a fim de fazer valer esse direito, a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram) e o Fundo Elas, por meio do projeto Mulheres em Movimento, está promovendo a partir desta segunda-feira (20) até o dia 29, das 9h às 18h, um mutirão de retificação de nome e gênero, na sede da associação, localizada na rua “P”, 27, conjunto Eldorado, zona Centro-Sul de Manaus.
Como o procedimento feito diretamente no cartório não é tão simples (a lista de documentos exigidos é extensa) e nem sempre é barato (custa em média entre R$350 a R$ 400), a ação visa não somente facilitar a vida das pessoas transexuais que desejam alterar o nome e gênero de registro em sua documentação de nascimento, como também vai acompanhar e custear a certidão de tabelionato de protestos.
Segundo a presidente da Assotram, Joyce Gomes, cerca de 40 pessoas compareceram na sede da associação para dar início ao processo de retificação no primeiro dia de mutirão. “A nossa luta é por reconhecimento. O ‘’nome social’’, que não é respeitado, ainda nos impede de ter acesso a diversos serviços, por isso tomamos essa iniciativa de facilitar a retificação, principalmente porque a gente sente na pele o quão importante é ter um nome de fato registrado’’, destacou.
Entre os que compareceram no primeiro dia de mutirão estava o atendente Pietro Rodrigues, 21, que se reconhece como homem trans desde os 16 anos. “Já estou cansado de ir a lugares como o hospital, e até mesmo em boates, e as pessoas ficarem perguntando se sou ‘’ele’’ ou ‘’ela’’. Eu estava me organizando para alterar os meus documentos em um cartório ainda esse ano quando, felizmente, eu soube desse mutirão”, disse.
O que mais motivou Pietro a dar entrada no procedimento de retificação foi um constrangimento que ele passou recentemente em um hospital público. “Mesmo com o meu nome social na carteira do SUS, a médica disse que usaria o meu ‘’nome civil’’ durante os exames porque pediriam a minha identidade e não aceitariam se eu usasse o meu nome social’’, contou.
Também cansada de passar por constrangimentos diários, a atendente Bianca Fontenelly, 25, aguardava ansiosa a sua vez para dar inicio ao processo de retificação. “Estou tentando retificar os meus documentos há três anos. Já cheguei a desistir diante dos custos altos no cartório. Eu me entendo como mulher desde os 12 anos e desejo ser reconhecida, de fato e de direito, como Bianca. Já tive muitos atritos com pessoas que insistem em me tratar por ‘’ele’’ usando como argumento o meu registro civil. Quero dar um ponto final a esses episódios constrangedores com a alteração da minha identidade civil’’, relatou.
Quem também pode ser beneficiada pelo mutirão é a vendedora Emilly Rigonatty, de 21 anos, que muitas vezes adiou a retificação dos documentos devido aos preços cobrados pelos cartórios. ‘’Além disso, é muito burocrático. Só queremos mudar o prenome e o sexo no documento e, para isso, você tem que providenciar vários documentos e ir ao cartório de protesto, e os custos finais são altos demais para pessoas que não recebem mais de um salário mínimo. Nesse processo todo, parece que a gente está nascendo de novo’’, disse.
Emilly ressalta que, para as pessoas transexuais, ter o nome social registrado nos documentos tem um significado especial, pois durante muito tempo foi considerado apenas um ‘’nome de guerra’’, o que invisibilizava toda uma existência e causava uma série de constrangimentos em situações e lugares onde era preciso apresentar a carteira de identidade.
“Ainda hoje, se uma pessoa vê o meu nome masculino em algum documento e olhar pra mim, uma mulher trans, posso ser alvo de constrangimentos, pois nem todos têm o hábito de não ter preconceito. Uma situação dessas em uma entrevista de emprego, por exemplo, pode ser muito ruim’’, contou.
Como observa o nutricionista Thiago Costa, coordenador do Coletivo O Gênero, que auxilia homens transexuais em Manaus, o nome é o que realmente expressa a personalidade jurídica, sendo inalienável e imprescritível da individualidade de cada pessoa.
“No caso das pessoas transgêneros me questiono se o nome seria o direito de personalidade ou um direito patrimonial, pois apesar de não ter valor patrimonial atribuído para pessoas cisgêneros, talvez o tenha para pessoas transgêneros por ser um dos primeiros itens que denotam a ideia de conquista da identidade de gênero na qual se sentem mais confortáveis’’, refletiu.
“O nome, quando alterado juridicamente, nos auxilia primeiramente a existir em sociedade e não apenas à margem dela, nos possibilitando ter acesso a serviços de saúde, trabalho digno, cultura e possibilidade de transitar sem ter medo de ser violentado à luz do dia. Só vemos a grandeza dos nossos direitos conquistados quando já não temos acesso a eles’’, completou.
Conquistas recentes
Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou transexuais e transgêneros a alterarem o nome no registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação (mudança de sexo) ou decisão judicial. A alteração pode ser feita diretamente no cartório sem a presença de advogado ou defensor público.
Em junho do mesmo ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma resolução sobre o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados dos tribunais brasileiros. Seguindo as regras estabelecidas pelo próprio CNJ, o pedido não precisar mais passar pela Justiça.
No Amazonas, as pessoas transexuais e travestis já podem usar o nome social nos órgãos da administração pública estadual. O direito a identidade de gênero foi assegurado por meio da Lei 4.946, de autoria da deputada Alessandra Campêlo (MDB) aprovada pela Assembleia Legislativa (ALE-AM) e sancionada pelo governo no final do ano passado.
Conforme a lei, o nome social é entendido como aquele pelo qual a pessoa travesti ou transexual prefira ser chamada no dia a dia, como se reconhece e é identificada no meio social. O campo “nome social” deve aparecer nos registros de informação, cadastros, programas, serviços, fichas de formulários, prontuários e congêneres dos órgãos e entidades da administração pública. Para acessar este direito, o servidor desse solicitar a inclusão do nome social na secretaria onde trabalha.
Foto: Glenda Dinely
Documentação necessária
Aos interessados em participar do mutirão de retificação de nome e gênero é preciso apenas fazer a inscrição com os documentos atualizados e ter registro na cidade de Manaus. Os documentos necessários são:
• Certidão de nascimento;
• Certidão de casamento, se for o caso;
• Cópia do Registro Geral de identidade (RG);
• Cópia da Identificação Civil Nacional (ICN), se for o caso;
• Cópia do Passaporte brasileiro, se for o caso;
• Cópia do Cadastro de Pessoa Física (CPF);
• Cópia do Título de eleitor;
• Cópia da Carteira de Identidade Social, se for o caso;
• Comprovante de endereço;
• Certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
• Certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
• Certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
• Certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;
• Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;
• Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;
• Certidão da Justiça Militar, se for o caso.
Serviço
Mais informações sobre o mutirão, que será realizado até o dia 29 de janeiro (Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais) podem ser encontradas nas páginas da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram) nas redes sociais. Facebook: www.facebook.com/assotram e Instagram: https://www.instagram.com/assotram ou pelo telefone (92) 99461-0569 (falar com Joyce Gomes).