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João Paulo Tukano, primeiro indígena a defender doutorado em Antropologia pela Ufam

“A ciência trata o corpo como algo meramente biológico, os povos indígenas não, para nós o corpo é síntese de todos esses elementos que estão em nosso entorno", explica

Cley Medeiros
04/02/2021 às 11:13.
Atualizado em 22/03/2022 às 15:27

(Foto: Alberto César Araújo / Amazônia Real )

A concepção da ciência sobre o corpo é ampliada na tese de João Paulo Lima Barreto, primeiro indígena a obter doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). A defesa da tese está marcada para acontecer em um evento online, nesta quinta-feira (4), às 14h. Intitulada ‘Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro’, a pesquisa foi orientada pelos professor Dr. Gilton Mendes, do departamento de Antropologia. 

Nascido na comunidade de São Domingos, no Alto Rio Negro, mais de mil quilômetros de distância de Manaus, João é graduado em filosofia pela Ufam (ele também chegou a cursar Direito na Universidade do Estado do Amazonas), e buscou na história indígena do seu próprio povo Yepamahsã (Tukano) e outras etnias da região norte do Amazonas a base para defesa da tese. O doutorando explica que o objetivo de ter trazido a discussão sobre o corpo é para mostrar que os povos indígenas tem 'um conceito diferente do conceito que a ciência adota atualmente sobre o corpo'.

​ “A ciência trata o corpo como algo meramente biológico, os povos indígenas não, para nós o corpo é síntese de todos esses elementos que estão em nosso entorno. Portanto, qualquer desequilíbrio que eu provocar nessa relação que está em meu entorno, o corpo vai sentir”, afirmou.

O doutorando complementa sugerindo uma nova visão sobre a interpretação dos elementos físicos e químicos, agora sob a ótica indígena.“Na tese, eu trago essa discussão que é a teoria sobre o corpo e as práticas dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro, que é exatamente olhar que o corpo, do ponto de vista indígena, está composto de elementos, ou seja, o corpo é constituído de elementos como água, luz, ar, vegetal, animal, terra e a qualidade, que é uma dimensão que qualifica um corpo, pessoa, gente, humano”, disse.

Manipulação metaquímica

João Barreto, que também é ex-seminarista, afirma que sua tese é uma continuação das discussões que levantou em uma vida de estudos e inquietações sobre os conhecimentos indígenas e os equívocos na tradução desse conhecimento. No mestrado, João fez um compilado de traduções de termos indígenas om teor originalmente equivocado, no doutorado, aponta para a má interpretação de rituais indígenas.

“Eu trago essa discussão pelo fato de que nosso conhecimento foi muitas vezes entendido na chave da religião. Quando os nossos especialistas indígenas, conhecidos como pajé, começam a fazer benzimento pra curar uma pessoa, acham que eles estão rezando, acham que eles estão pedindo força do espírito, falando com espíritos mortos, e não é. Esse ato de pegar qualquer elemento e versar sobre ele é exatamente sobre o poder que eles têm de evocar elementos, substâncias curativas nos vegetais e minerais. Então, eu costumo dizer que é uma manipulação metaquímica das coisas, enquanto que a medicina faz a manipulação química nesse campo de produção de remédios", explica João Barreto.

De acordo com ele, a necessidade de produzir estudos do gênero é uma oportunidade para debater alternativas para interpretação de fenômenos, considerando a cosmologia indígena.“O esforço do meu trabalho e do trabalho dos meus colegas indígenas é trazer para um debate o conhecimento indígena para além desses conceitos que nós já estamos habituados... Nós estamos propondo e dizendo que povos indígenas têm uma epistemologia que é diferente dessa epistemologia da ciência”, conta.

Diante dos desafios que a comunidade indígena enfrenta em um cenário cada vez mais sufocante de ameças ambientais, sociais e religiosas, João Barreto defende a posição de que a Universidade continua sendo um bom caminho para reproduzir o conhecimento científico indígena, mas que ainda muito deve ser feito para garantir o acesso.

“A universidade, por estar no estado onde tem maior diversidade de povos indígenas, deve estar aberta a multiculturalidade. Eu tenho percebido que a universidade é muito guardiã das teorias eurocêntricas, muitas vezes a gente tem muita dificuldade de propor uma atitude reflexiva porque muitas vezes os professores não abrem mão dessas verdades da ciência que nós aprendemos. E eu quero dizer que a Ufam está numa arena onde tem grande possibilidades de trazer esse conhecimento para dentro da universidade, para oxigenar e diversificar os conhecimentos. Observamos, lamentavelmente, que as epistemologias indígenas não ocupam lugar devido, eu não costumo ir muito longe, é só ver que a Ufam, que se diz presente em mais de 100 anos dentro dessa região, a gente vai lá e não vê uma disciplina voltada as questões indígenas e muito menos a língua indígena sendo colocado como disciplina, mas temos outras disciplinas japonês, inglês, francês, etc menos a indígena. Então daí começamos a refletir o quanto a universidade ainda é muito fechada”, finaliza.

*Colaborou Amariles Gama

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