Arte de graça, tem graça pra quem?

Por Taciano Soares, ator, diretor, produtor cultural, professor universitário, Mestre em Cultura e Sociedade e Doutorando em Artes Cênicas pela UFBA,

Taciano Soares
Taciano Soares
20/12/2019 às 12:04.
Atualizado em 24/03/2022 às 22:10

A cultura (e a arte é uma de suas manifestações) é um direito assistido à população pela Constituição Federal. Não tenho certeza se todos sabem disso, mas é.

Esse campo de discussão é um tanto nebuloso para a maioria da sociedade brasileira, pelo simples fato de que em nossa formação social a arte, com poucas exceções,não é tratada como lugar de atuação profissional. Todo artista viveu – ou conhece quem tenha passado por isso – um embate com a família quando apresentou sua escolha profissional e de formação: a arte.

Superado esse aspecto que, infelizmente, é um senso comum no nosso país, o cidadão sabe diferenciar quando é hora de pagar e quando a arte deve ser gratuita? Melhor dizendo: como temos construído o papel da arte e sua relação de consumo na sociedade atual? A Constituição Federal brasileira fala, no art. 215, de um termo chamado “democratização do acesso aos bens de cultura” (que aqui vamos entender como arte para estreitar nosso pensamento). Nesse ponto é que nasce a problemática do conceito versus a aplicação nas práticas e políticas sociais.

Democratizar o acesso aos bens culturais (e artísticos) não significa promover a gratuidade de tudo a todo instante, como se fosse uma “obrigação” do poder público, mera e simplesmente. Mas ao contrário, democratizar significa que haja, de maneira descentralizada, espaços de manifestações artísticas, a fim de que a cidade seja um polo geográfico multiterritorial capaz de atender às multiplicidades de linguagens e consumo artístico.

Basta imaginarmos um cenário em que todas as zonas da cidade e do estado, por exemplo, detenham lugares onde a população possa fruir as obras: equipamentos culturais com programação regular de artistas de linguagens diversas e de forma continuada. A gratuidade não está ligada à ideia de consumo das artes e sim a um exercício de sensibilização em áreas onde esse mesmo consumo ainda se dá de forma incipiente, diante da capacidade de aumento.

Para trocar em miúdos: o ideal não é que as pessoas tenham que se deslocar de suas casas para o centro da cidade a fim de que possam fruir de alguma obra artística, mas o que ainda vemos é o contrário: a centralização dos equipamentos e das manifestações corrobora para uma espécie de “pedido de desculpas” apresentado à necessidade de locomoção da população e este se dá por meio do incentivo à gratuidade.

Os bens de cultura muitas vezes são tomados como um lugar de relaxamento da família e que isso deve ser garantido pelo estado de forma gratuita ao consumidor, como se a sociedade fosse um grande spa e a arte fizesse parte de um pacote de contrapartidas pelos investimentos feitos (impostos pagos). O que não tem sido levado em consideração é que para que essa “contrapartida” aconteça há muito investimento em formação, estudo, técnicas, capacitação... e que isso não se dá de forma gratuita. Em muitos casos, o artista age como um nômade em busca de, cada vez mais, aprimoramento do seu trabalho, com recursos próprios e em redes de apoio através de trocas e intercâmbios.

O artista é, antes de tudo, um profissional e seu processo de formação é tão meticuloso quanto qualquer outro e, por isso, o fomento à arte não está na intervenção do poder público quanto à comercialização do produto final ou sua gratuidade, mas sim na oferta de condições de que esse mesmo artista possa ter onde desenvolver seu trabalho de forma continuada. A comercialização da arte convoca o pensamento sobre a necessidade de recompensa por um trabalho, dando inclusive autonomia ao artista que passa a depender, cada vez menos, das iniciativas unicamente do ente público. Ele se torna gestor de sua própria cadeia produtiva.

Como os artistas podem pensar na ideia de profissionalização do seu campo de trabalho dependendo de cachês esporádicos e sem a efetiva contribuição no pensamento da mercantilização dos bens artísticos? Quando o poder público orienta suas ações de fomento por meio de contratações eventuais apenas, sem considerar que esses profissionais dependem da comercialização de seu trabalho para angariar recursos à subsistência (premissa básica da sociedade capitalista) promove, talvez, um retrocesso no engajamento à emancipação do cenário profissional.

Espetáculos gratuitos são (ou deveriam ser) cerejas de bolos da promoção cultural em zonas escassas de atividades e fomento artístico e não uma prática subsidiada pelo ente público de forma regular.Esse tipo de ação acaba sedimentando em zonas de intensa atividade artística (centro da cidade, por exemplo) um verdadeiro desequilíbrio em um processo contrário e necessário, que é o de reparação da nossa falta de educação social de que a arte não é passatempo ou hobby, ela é resultado do trabalho de profissionais e, por isso, seus bens detêm valores mercadológicos que precisam ser fomentados, como qualquer outro bem de consumo.

Para refletir: que possamos encontrar saídas para conquistarmosum público consumidor de arte. Esse sim precisa de fomento, desde a infância (!) e se revela como uma saída para a emancipação do cenário artístico local. Desse jeito, a gente deixaria o poder público realizar o trabalho dele que é efetivamente democratizar o acesso, criando condições para que todos os municípios do Amazonas e as regiões de Manaus tenham equipamentos culturais dotados de programação diversa e regular à população, compreendendo os momentos estratégicos de lançar mão da gratuidade como uma efetiva promoção cultural.

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