Crônicas

Amanheceu dezembro...

"Notei o cansaço e o mais agudo das dores a exigirem que estivesse posta em cadeira de rodas, e, mesmo assim, parecia uma rainha conduzida por um guardião particular"

Robério Braga
Colunista especial - A Crítica
03/12/2022 às 15:26.
Atualizado em 03/12/2022 às 15:27

A atriz amazonense Ednelza Sahdo morreu aos 78 anos de idade,na última quinta-feira (1)

Amanheceu dezembro com tom sombrio no ar depois de madrugada de chuva intensa, e, para mim, com uma notícia de cortar o coração. Há poucos dias, graças às redes sociais, pude ver a jovem senhora de quase oitenta anos contemplando a decoração natalina muito bem-feita e de alta qualidade que foi instalada no calçadão da Ponta Negra. 

Sorriso aberto, não percebi que houvesse um olhar de despedida, talvez porque ela nunca se despedisse, por nada, pois era sempre muito chegada aonde quer que fosse.  Notei o cansaço e o mais agudo das dores a exigirem que estivesse posta em cadeira de rodas, e, mesmo assim, parecia uma rainha conduzida por um guardião particular.

Sabia, e acompanhei como pude, que estivera entre a cruz e a espada no tempo desesperador da pandemia, mas, como sempre se saíra bem de todas as aventuras em que se envolvera, confiei que, mais uma vez, conseguiria pular a fogueira e passar o Natal experimentando e propiciando alegrias aos que a admirávamos pela arte a que se dedicou com esmero, alegria que espargia e pelo coração magnânimo que possuía.

Depois, como em passe de mágica, lembrei de muitas oportunidades em que estivemos juntos, desde a escola na contemporaneidade de uma geração que soube conquistar o seu espaço, ser útil à sociedade e, ao modo do que a cada um foi permitido, conseguiu vencer. Primeiro, as dublagens, inesquecíveis dublagens que fizeram enorme sucesso no Teatro Amazonas, na Maloca dos Barés, no Teatro Juvenil, e, inclusive, na inauguração do Cine Palace. Lembrei dos folguedos de São João em que fomos brincantes de danças folclóricas no Instituto de Educação e no Festival Folclórico da praça general Osório. Não raro nos encontrávamos nos concursos de fantasia carnavalesca dos clubes Ideal e Rio Negro, em um dos quais ela brilhou como “Chica da Silva no Império de Momo”. 

O apogeu da ilustre senhora  Ednelza Sahdo  viria mais tarde: no palco de nosso Teatro principal, com dezenas e dezenas de interpretações memoráveis que lhe consagraram para todo o sempre como a grande dama das nossas artes cênicas. Adiante, tornou-se mestra das mestras de agora, e, na escola que ousei implantar há mais de vinte anos, o Liceu de Artes Claudio Santoro, dei a ela a elevada responsabilidade de praticar com os jovens o que aprendera com a vida: educação artística, sensibilidade para dizer, portar-se, calar, falar pelas mãos e pelo olhar, estar em cena como se real fosse. E havia resistências: os burocratas alegavam que ela não possuía diploma acadêmico. 

Declamava com maestria e interpretação singular. Em todos os grandiosos espetáculos de comemoração do Natal que realizamos no Largo de São Sebastião, havia uma cadeira cativa, pronta, para a grande intérprete de Hemetério Cabrinha, Max Carphentier, Farias de Carvalho, Oséas Martins... e de trechos bíblicos. Era um momento significativamente esperado por todos nós e pelo grande público que acorria para aplaudir nossos músicos, cantores, maestros, artistas...

No dizer antigo do multitalentos Sergio Cardoso, “sua formação teatral foi a própria vida. Ela cirandou a própria vida.” Verdade, ela cirandou em teatro, cinema, declamação, canto, dança, carnaval, televisão, e, com a arte, venceu os dramas que a perseguiam e suportou as dores que sangravam. Por isso, o seu valor foi mais uma vez proclamado em alto e bom tom no recente Festival de Teatro da Amazônia com homenagens a seu talento e ao seu trabalho, ressoando aplausos pela justiça do gesto dos seus organizadores, quase todos herdeiros da convivência fraterna que ela emprestava de forma encantadora e divertida. 

Amanheceu dezembro, chuvoso e triste, e ela foi chamada para o palco das mais elevadas estrelas para exercer seu mister nos paramos superiores. Há de ter sido recebida entre cânticos, orações e luzes, mas, também, para se compromissar com novos aprendizados em busca do aperfeiçoamento do espírito em cujo mundo, creio, os aplausos hão de vir pelo empenho em servir e aprender.   

  

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