Lenda possui 35 metros de frente, enquanto ritual tem 42 metros de boca de cena. Conceito estético das alegorias acompanham pesquisas feitas pelo DGE
Parte da alegoria da lenda de Honorato e Caninana (Junio Matos)
As cobras irmãs Honorato e Caninana “descansavam” em um momento de trégua na concentração do lado vermelho do Bumbódromo de Parintins, a algumas horas do início do 55º Festival Folclórico de Parintins, que inicia nesta sexta (24). A lenda amazônica é a principal aposta alegórica do touro branco para edição do festival, e será apresentada no primeiro dia de apresentação, assim como o ritual Karõ Krahô, que também será o outro destaque visual da noite.
Ainda posicionados no chão, os módulos da alegoria que representavam as duas cobras, estavam posicionados frente a frente, com os braços de ambos fazendo uma espécie de “reverência” um ao outro, antes de começarem a batalha que cerca a lenda - uma das mais famosas da nossa região.
As duas alegorias de ritual e lenda foram construídas em três meses. O conceito das alegorias é fruto da pesquisa da Direção Geral de Espetáculo (DGE) do Boi Garantido. A partir de uma sinopse criada por eles e entregue aos compositores e artistas de alegoria, tudo sai do papel e se materializa na arena.
A alegoria de Honorato e Caninana, assinada pelo artista plástico Neto Barbosa, possui 35 metros de frente e cinco módulos, além de ter o conceito técnico e robótico guardado a sete chaves pelos membros da DGE, para não comprometer o fator surpresa.
Ainda conforme o artista, a alegoria em si não é gigantesca, mas a escultura, sim. “Com a luta das cobras irmãs, a que perde se regenera e vira uma cobra boa. A cunhã-poranga vai sair da escultura da Caninana”, coloca ele, lembrando que a alegoria também vem acompanhada de um cenário metade indígena e metade caboclo.
De acordo com Mencius Melo, um dos compositores da toada “Quando Honorato Lutou Com Caninana” - que dá o molde sonoro da alegoria - afirma que o conceito da estrutura na arena é de embate. Mas a lenda será revisitada e adaptada para sensibilizar o público para uma das principais problemáticas da sociedade hoje: o feminicídio.
“Os dois seres encantados são gigantescos e animalescos, e eles vão para um embate provocado pela letra da toada. Porque, conforme reza a lenda, os dois entraram em luta e Honorato matou Caninana, mas no conceito de revisitação que o Garantido faz nessa alegoria, Honorato não irá matar Caninana. Tupã irá intervir”, declara Mencius.
Nesta adaptação, Honorato irá apenas apaziguar sua irmã Caninana, junto intervenção de Tupã. “E Tupã a transformará numa linda mulher, que é a cunhã-poranga. Com isso, o Garantido ressignifica a lenda e diz ‘não’ ao feminicídio, uma vez que Caninana é uma mulher”.
Com isso, o Garantido alegoricamente transforma Caninana, de um ser mal para um ser bom, para um ser feminino e belo, que é a cunhã, pontua Melo. “E assim a gente passa um recado ao mundo de que mulheres não podem ser mortas em nome de nenhuma bandeira”, finaliza.
O ritual
Alegoria do ritual Karõ Krahô (Junio Matos)
Outro grande momento alegórico do Boi Garantido a vir na primeira noite de festival é o ritual “Karõ Krahô”, também assinado pelo artista plástico Neto Barbosa, e que traz um resultado estético auspicioso e volumoso: ao todo, a alegoria traz 42 metros de boca de cena, o que, de acordo com Rubens Alves, membro do DGE do Garantido, nunca foi feito antes. A alegoria possui 15 módulos.
“O nosso diretor de galpão, Antônio Cansanção, que tem mais de 30 anos de experiência, chegou pra mim e disse que nunca montou uma estrutura tão grande. Estão montando estrutura de cenário, elas são abertas. A alegoria vai chegar muito próximo da galera, está no limite da arena”, pontua Alves, que também é um dos compositores da toada “Karõ Krahô – A batalha das almas”.
De acordo com Neto, Karõ Krahô é o ceifador da morte, que julga as almas. O fundo do cenário, segundo ele, vai reproduzir uma espécie de inferno. “O pajé virá do alto como um anjo do bem”, pontua ele.
Conforme Rubens, o ritual do Karõ Krahô vem do livro “Os Mortos e os Outros”, da escritora Manoela Carneiro. “O livro diz que, quando a pessoa não aceita a morte ou quando é muito jovem, e a alma não chega ao mundo espiritual, ela pode ser ‘entre aspas’ ressuscitada pelo pajé”, conta ele.
O projeto da alegoria traz uma questão de duelo entre bem e mal, viver e morrer. “E o que a gente vai ter de concepção, é que as tribos entram na alegoria com um corpo já desfalecido. E esse corpo vai ser elevado e, de cima da alegoria, o pajé vem de um guindaste na oca que vai ser aberta e ele desce. No céu, ele vai ter um encontro com essa alma”, pondera Rubens.
No momento cênico, o pajé fará o resgate dessa alma, trazendo ela de volta, para fazer a sua ressurreição. O simbolismo da apresentação faz uma espécie de alusão às pessoas que foram acometidas pela Covid-19. “Aquelas pessoas que ficaram internadas, chegaram em estado de intubação e reviveram, voltaram à vida”, diz Alves.
Na alegoria, predominam as cores na paleta de tons vermelhos, e apenas dois módulos possuem tons mais esverdeados, que são os módulos a representar os seres do bem. A figura do ceifador, que vem no módulo central trajando uma capa negra, representa a morte.
“A morte é normalmente representada por um ser de capa negra. E muitas pessoas pensam que isso vem da Europa, e não é. Povos de todo o mundo representam a morte com uma capa negra. Se a gente fosse fazer uma comparação com a Covid-19, ela seria o próprio vírus, e no ato alegórico, ela será expulsa pelo pajé. A gente tem uma batalha do bem contra o mal, da vida contra a morte, e a vida no final vai vencer”, completa Alves.