Combate às queimadas

MPC apura se houve negligência no combate a queimadas e na resposta à seca histórica

Procurador Ruy Marcelo Alencar diz que atuação do governo estadual e das prefeituras está sendo “observada”

Waldick Júnior
waldick@acritica.com
04/11/2023 às 12:17.
Atualizado em 04/11/2023 às 12:51

Na avaliação do procurador o enfrentamento desse problema ambiental exige uma ação coordenada e planejada dos órgãos públicos nas esferas municipal, estadual e federal. (Junio Matos)

Coordenador da área de meio ambiente do Ministério Público de Contas (MPC), órgão da estrutura do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE-AM), o procurador Ruy Marcelo afirmou que as condutas dos administradores municipais e estadual, em relação à estiagem histórica e às queimadas que inundam os céus de Manaus  de fumaça há dois meses, estão sendo apuradas.

O MPC quer saber se houve o atendimento das recomendações emitidas pelo órgão de controle, se houve negligência ou “omissão proposital”. Na avaliação do procurador o enfrentamento desse problema ambiental exige uma ação coordenada e planejada dos órgãos públicos nas esferas municipal, estadual e federal. A seguir a entrevista.

O Amazonas está há pelo menos dois meses encoberto por fumaça. A capital, Manaus, que concentra dois milhões de habitantes, está insalubre. Existem queimadas e existem agentes que podem combatê-las. O que faltou?

O Ministério Público de Contas e o Tribunal de Contas do Estado acompanham a agenda ambiental há mais de uma década desde que, pelo planejamento de controle externo, se elegeu a temática da sustentabilidade e defesa do meio ambiente como uma das prioridades, um dos focos da instituição, que deve controlar e zelar pelo melhoramento da qualidade da gestão pública.

O que acontece é que nem sempre a gestão pública está bem informada para fazer o seu planejamento, considerando os alertas que a ciência fornece. Neste caso, confrontando com uma certa cultura de emprego do fogo, a ciência nos avisava há mais de duas décadas que o planeta e a nossa região já não suportariam mais o mesmo índice de práticas de fogo, de desmatamento, sem que isso desequilibrasse a natureza, sem que causasse uma crise climática. Em virtude da postura de ceticismo, do que era apenas prognóstico da comunidade científica, nós tivemos resistência por parte de governantes, de gestores, de envidar esforços para diminuir os impactos antes que os eventos começassem a piorar.

E é um trabalho que vem desde a grande temporada de fogo que houve em 2016. A partir de 2016, voltou a aumentar o número de focos tanto de desmatamento quanto de queimadas, voltando a nossa atenção para recomendar às autoridades estaduais e municipais o fortalecimento de políticas públicas de combate a essas práticas, considerando que elas causam esse desequilíbrio, mas como não era tão visível o desequilíbrio, não houve o devido grau de atenção, principalmente da parte dos prefeitos, com relação à prioridade, à seriedade, à gravidade do assunto.

O que temos de novidade nos últimos meses é que não só na Amazônia ou no Brasil, mas nos continentes todos, aquilo que era prognóstico se tornou uma realidade, uma realidade nova, emergente, que é a concretização do que os cientistas expuseram, a intensificação dos eventos climáticos extremos, por efeito da quantidade elevada de emissões de gases de efeito estufa, tanto por queimadas e desmatamento como pelas indústrias, pela nossa maneira de produzir energia, de fazer transporte, dentre outros setores, nos levando a essa grande responsabilidade para com as novas gerações de buscarmos sobrevivência, adaptação, mudando toda a mentalidade gerencial, o que passa pelo fortalecimento do comando e controle ambientais, mas requerem muito mais, políticas públicas variadas, todas para nos garantir segurança climática e desenvolvimento sustentável.

Na avaliação do procurador o enfrentamento desse problema ambiental exige uma ação coordenada e planejada dos órgãos públicos nas esferas municipal, estadual e federal. (Junio Matos)

 O combate ao desmatamento passa pelas três esferas do poder Executivo: federal, estadual e municipal. O que cabe a cada um deles e como o senhor avalia a necessária cooperação entre os três entes para o combate a esse problema?

Segundo a Constituição brasileira, do ponto de vista das leis, é responsabilidade comum, porque é uma tarefa, segundo a lei, que cabe tanto à União quanto a estados e municípios, as políticas públicas, as ações de comando e controle de incentivo para garantir a sustentabilidade e evitar essas ocorrências de desmatamento e queimadas, e de impactos durante secas, enchentes. A obrigação é comum. O que nos falta é um planejamento para ações cooperadas com caráter preventivo, que se antecipem aos acontecimentos, às catástrofes e possam, na medida das posições preferenciais de cada ente, oferecer o seu melhor à população para colocá-la a salvo de todos os prejuízos que daí podem incorrer. Então, o que faltou é o plano desses entes de maneira conjunta para evitar os efeitos dos desastres.

Qual o papel do MPC na fiscalização da atuação dos entes municipais e do governo estadual no combate a incêndios florestais? Foi expedida alguma recomendação ou entraram com alguma representação nesse período?

O Ministério Público de Contas, juntamente com o TCE, são órgãos que efetuam o controle externo da administração pública nos níveis estadual e municipal. Então, tem o dever tanto de fiscalizar quanto de orientar para melhor o desempenho da gestão, inclusive, a gestão de desenvolvimento sustentável. Infelizmente, apesar das nossas medidas, não fomos capazes de contornar esse estado de coisas, mas em virtude do trabalho, é intensa a movimentação de agentes públicos para atender às orientações, às recomendações do MP e do TCE.

Num primeiro momento, nós recomendamos, nós fazemos o levantamento da situação para tentar ajudar os gestores de uma maneira pedagógica. Então, foram diversas recomendações expedidas sem qualquer tipo de penalidade, de demérito, compreendendo a complexidade da sua função para que ele assumisse com maior vigor o desafio de enfrentar as mudanças climáticas e de preconizar pela sustentabilidade socioambiental no nosso estado. Agora, infelizmente o retorno que tivemos não foi satisfatório. Daí, temos feito ainda representações que geraram decisões no TCE, determinando providências que estão em curso. Por exemplo, registramos o melhoramento da gestão preventiva da Defesa Civil. Registramos um certo fortalecimento da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e do Ipaam, mas ainda temos mais a melhorar, como sabemos, diante de toda a dificuldade que marca esse cenário.

Estamos numa fase de observar o quanto a administração pôde fazer ou deixar de fazer em virtude de todas as nossas recomendações e determinações. E agora vamos apurar para saber se houve eventual negligência, se houve omissão proposital, e mesmo não havendo, vamos indicar as fraquezas, os pontos que devem ser reforçados, por exemplo, para as estações de 2024, quando teremos, igualmente, enchentes e vazantes.

Temos esses pontos fracos, como o senhor disse. Dois deles são: baixo efetivo e falta de recursos. Sobre esses problemas, o MPC expediu recomendações ou representações recentes?

Juridicamente, os gastos públicos estão sujeitos a graus de prioridade. Tem gastos públicos que não são só obrigatórios, como devem proceder outros investimentos. O que o tribunal já fez, em dois exercícios subsequentes, foi alertar as autoridades com relação a uma timidez de metas e de recursos voltados para o combate a essa situação.

Então, o tribunal, após esse alerta, monitora agora para saber o que o gestor fez e se o fez na medida da sua possibilidade de agir em função dos recursos que poderiam ser realocados e dos contingentes adicionais para enfrentar. Quando falo como procurador, temos que ter uma prudência, uma responsabilidade de entender que existem processos em curso para que sejam apuradas de maneira imparcial, técnica, se o gestor realmente emendou esforços ou se ele negligenciou aquilo que fora recomendado, fora alertado pelo TCE. Nós estamos nessa fase.

Existe uma apuração atualmente em curso de avaliação, inicialmente, das ações do governo estadual e das prefeituras nesse cenário de queimadas, desmatamento e seca, é isso?

Exatamente. Nós estamos observando e apurando tudo para saber se o esforço é aquele aceitável, na medida do possível, ou se houve da parte de alguma autoridade, conduta negligente, erro grosseiro que comprometa a sua responsabilidade perante o Tribunal de Contas. É isso que devemos analisar sem perder de vista que a realidade é desafiadora. Que talvez não esperássemos todos passar por tão grave evento climático como o que assola neste momento o nosso estado. O que determina maior fortalecimento pelo caráter emergencial que o problema ganha. Não podemos mais tolerar que em 2024 façamos novos experimentos para saber se a coisa é grave. Já sabemos, hoje, que a gravidade pede a multiplicação de meios e que isso se torne política de estado, algo prioritário.

Uma das medidas defendidas durante essa crise de queimadas foi a de convocar os aprovados no concurso do Corpo de Bombeiros, realizado no início do ano, o que não aconteceu. Cabe ao MPC atuação nisso? O órgão defendeu essa posição em alguma recomendação ou representação?

Sim, é algo que nós estamos apurando, porque depende muito das circunstâncias. Num cenário ordinário, de normalidade, o administrador tem a prerrogativa de ajustar o melhor tempo para fazer essas investiduras e os gastos correspondentes, principalmente submetido ao imperativo de responsabilidade fiscal. Agora num estado de emergência ou de calamidade pública, a coisa muda de figura do ponto de vista jurídico. Passa o gestor a estar obrigado a tomar medidas à altura do problema para pôr a população a salvo.

Além das queimadas, temos a maior estiagem a que se tem registro nos principais rios do estado. Temos 62 municípios em estado de emergência. Em alguns, inclusive Manaus, faltou água e alimentos para pessoas que ficaram isoladas. Tínhamos a possibilidade de prever isso e minimizar o cenário? Se sim, como?

Tínhamos, sim. Hoje, tanto do ponto de vista do conhecimento tradicional como dos recursos tecnológicos, nós temos como mitigar, arrefecer, diminuir os prováveis impactos de uma situação que era conhecida desde dezembro de 2022. Uma tendência, por estudos meteorológicos, de que haveria um El Niño forte para este ano, gerando fortes chuvas no Sul do país e seca no Norte. Era possível desde lá trabalhar o gerenciamento de risco, a gestão preventiva para evitar as consequências que hoje estão tendo, infelizmente, curso.

O fato é que a nossa mentalidade, a mentalidade da proteção e defesa civil, de modo geral, no Brasil, ainda é reativa. Nosso levantamento dos planos de contingência em toda a estruturação de proteção e defesa civil [mostra que estes planejamentos] estão para o preparo de resposta a um desastre colocado. Então, toda a ótica é: sabemos que vamos ter seca, então vamos nos preparar para quando a seca chegar, agirmos.

Essa falta de preparação, apesar do cenário conhecido, pode acarretar alguma consequência ao gestor público, uma punição? Seja ele estadual ou municipal.

Depende. É de uma apuração criteriosa que os órgãos de controle devem fazer e que o Ministério Público, o Tribunal de Contas fará sobre ter havido alguma negligência, algum tipo de omissão mais relevante. Estamos aqui no campo da hipótese, dizendo: sabíamos que existia uma lei obrigando a prevenção. Na prática, constatamos que o gestor tentou efetuar essa prevenção. Infelizmente, foi mal-sucedido, mas se esforçando para tanto. Então, ele não será penalizado. Ele será apenas alertado sobre a necessidade de corrigir os pontos fracos, de buscar ser eficiente. Agora diferentemente disso, se constatarmos a completa inércia, que o assunto ficou esquecido, que nada fez a autoridade para prover planos de contingência, preparar minimamente antes da seca, poderá haver representação propondo a apuração de responsabilidade e a aplicação de penalidades na forma da lei orgânica do TCE. Isso já aconteceu em relação a certos municípios, ou melhor, a maioria dos municípios, porque lá identificamos que não existe qualquer estrutura de combate a ilícitos ambientais. E mesmo após admoestações, permanece o mesmo quadro. Os prefeitos tentam justificar na falta de recursos, mas nem sempre isso é plausível, porque, são as escolhas na aplicação do dinheiro público que pesaram na falta de ação.

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