Entrevista

‘A região amazônica não é o quintal do Brasil’, afirma fundador do Musa

Fundador e diretor do Museu da Amazônia (Musa), Ennio Candotti , é um dos representantes do Amazonas no chamado ‘Conselhão’ do governo federal, formado para propor políticas públicas

Waldick Júnior
15/05/2023 às 09:16.
Atualizado em 15/05/2023 às 09:16

(Foto: Jeiza Russo)

Integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) do  governo federal, o físico radicado em Manaus Ennio Candotti está entre os articuladores de um Grupo de Trabalho sobre Amazônia no colegiado.

Em entrevista para A CRÍTICA, o fundador e diretor do Museu da Amazônia (Musa), na capital amazonense, afirmou que se uniu a outros representantes da região no ‘Conselhão’ para ajudar a elaborar propostas para a realidade da região.

Presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Candotti também falou sobre o cenário de cortes vivido pela área e a necessidade de valorização dos institutos de pesquisa do país. Confira abaixo.   

O senhor já compôs o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia entre 2003 a 2007 e 2011 a 2015, e também o 'Conselhão'. Hoje volta a ocupar um assento como esse. O que representa esse retorno a um colegiado do governo federal?

Vou concentrar meu depoimento na importância de ter convocado alguns representantes do Amazonas e da Amazônia. São poucos frente ao papel que a região tem no contexto político. Há uma questão muito importante que é uma desinformação dos próprios órgãos de governo do que está ocorrendo na Amazônia e das instituições que existem e estão pensando e propondo soluções para a região. Nos poucos minutos que me deram para fazer um depoimento no Conselhão, apresentei um mapa que um grupo de pesquisadores do Pará e da Amazônia fizeram.

Nós mapeamos cerca de 32 grandes instituições na Amazônia Legal. Isso quer dizer universidades, institutos de pesquisa como a Embrapa, o Inpa, o Mamirauá, Evandro Chagas e outros, com um número significativo de pesquisadores. Estes 32 institutos, nos últimos 20 anos, criaram outros 300 institutos, campi das instituições. Por exemplo, a UEA, que tem unidades em Parintins, Humaitá, Tefé, enfim... Ou seja, as instituições de pesquisa estão perto da grande batalha pela conservação da floresta e sua utilização de maneira sustentável. Falei aos outros membros do conselho que muitas vezes se ouve apenas especialistas das universidades do Sul falando da Amazônia sem muitas vezes ter estado aqui. 

A presença do senhor e de outros integrantes da Amazônia vai ser suficiente para que o conselhão elabore políticas que considerem a realidade da região, sem uma visão estereotipada vinda do Sudeste?

É o nosso objetivo. Eu e outros colegas do Pará estamos empenhados em mudar essa visão muito romântica, colonizadora. São resíduos de relações coloniais que ainda subsistem no nosso próprio país. Precisamos romper com isso e o fórum do conselho é um a mais, porém, não é suficiente. Mas eu vou batalhar. Vamos criar um Grupo de Trabalho sobre Amazônia. Isso já foi uma primeira conquista. Sugestão que foi acatada. Vamos primeiro valorizar as instituições que existem aqui. 

O conselho que o senhor faz parte agora havia sido extinto em 2019, primeiro ano da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Qual a sua avaliação sobre o fim desse colegiado, à época?

Sou um firme torcedor pelo aumento da participação popular, das mais diversas vivências da cultura. Isso me levou ao conselho há cinco anos, em 2015. Eu estava lá discutindo essas mesmas questões e poderia garantir a você, e deve ter em A CRÍTICA entrevistas que enfatizavam essa questão. A região amazônica não é o quintal do Brasil. Amazônia tem uma vida política, intelectual, social e é palco de conflitos imensos, mas que devem ser enfrentados de maneira sólida.
 
E a extinção do colegiado em 2019, qual a sua avaliação? 

Foi extinto esse, o Conselho do Fundo Amazônia, tantos órgãos se não foram extintos foram enxugados ou seus recursos foram contingenciados, recolhidos pelo Ministério da Fazenda, subtraídos dos seus objetivos para os quais foram enviados.
 
Para usar a mesma palavra que o senhor, a gente teve enxugamentos, inclusive, na área de Ciência & Tecnologia, a qual o senhor faz parte. O senhor é físico e presidente de honra da SBPC. Quais demandas do setor pretende levar ao conselhão?

Devemos retomar o funcionamento dos institutos. Esses institutos são como um carro, um carro com motorista que sabe aonde quer ir. Só que retirar recursos dessas instituições é como retirar gasolina de um carro. Se você fica sem, o carro fica inutilizável, ainda que o motorista seja competente. Distribuir recursos para fazer funcionar a máquina é a arte do governo e é isso o que tem de ser feito. 

Ainda sobre demandas para o conselho, o senhor também é fundador e diretor do Museu da Amazônia, em Manaus. É fato que a pauta socioambiental teve um retrocesso nos últimos quatro anos. O senhor também pautará essa questão?

Eu quero levar a pauta de que é preciso conhecer mais. Nós não podemos estar satisfeitos com o desconhecimento, por exemplo, sobre as plantas. Pode haver plantas com muito mais teor de açúcar do que a cana. Pode haver plantas medicinais com capacidade de combater determinadas doenças, enfim, precisamos trabalhar em pesquisa. E não só em pesquisa, porque ela não deve ser o único objetivo, mas também pensar na utilização do conhecimento. Os efeitos do El Nino e La Nina acontecem há centenas de anos na Amazônia e nós sabemos muito pouco o que acontecia com esses fenômenos há um milhão de anos, são pouco estudados. Outra questão que quero levar é o intercâmbio de estudantes e pesquisadores com países vizinhos da Amazônia. 

Um dos objetivos do conselhão é elaborar políticas públicas que podem ser transformadas em projetos de lei para serem apresentadas ao Congresso. O governo Lula tem sido alertado sobre dificuldades na articulação política, necessária para essas aprovações. Estamos no início do governo e isso pode mudar, mas até aqui o senhor teme que propostas do conselhão sejam prejudicadas por esse motivo?

Tenho acompanhado isso e de fato há resistências, como também há facilidades. Há propostas que passam e outras que encontram obstáculos, mas tudo que se refere à Amazônia é um consenso que deve ocorrer. Ninguém pode ser contra. Particularmente, se você mostra o valor de determinados conhecimentos, por exemplo, a bergenina vale R$ 1 mil por miligrama. A grama é R$ 1 milhão. O ouro vale o quê? R$ 200, R$ 300, ou seja, mil vezes mais que ouro e é uma molécula, um componente sintetizado pelo Uxi-Amarelo [planta]. Esses itens passam no Congresso, agora precisam ser apresentados da maneira correta e acho que temos chance de ganhar essa parada no Congresso. É impossível serem contra projetos civilizatórios, de ciência e tecnologia, apesar de sinais preocupantes que correm frequentemente no céu de 'nuvens negras'.

Ao ser recriado, o conselho teve a palavra 'sustentável' acrescentada no nome, demonstrando a importância desse tema no debate político atual. Para o senhor, o que é necessário para que a relevância dessa questão não fique limitada ao nome?

Os grupos de trabalho, os especialistas que convocamos, as nossas propostas de política de governo devem estar voltadas a defender a diversidade de gênero, o respeito às culturas, às línguas diferentes. Sustentável não é só a questão ambiental, mas também uma decorrência do reconhecimento da própria história, da memória. Só é sustentável o que tem memória. As intervenções na floresta devem respeitar a memória da floresta, que é uma memória de milhões de anos. O grave quando se desmata não é apenas desmatar, gerar carbono na atmosfera, isso é, infelizmente, uma consequência, mas o mais grave é cancelar memória impressa nas moléculas, no DNA das plantas, que vem a milhões de anos sendo construído, adaptado, evoluindo.
 
A SBPC, em conjunto com outras entidades, lançou um manifesto para criar o Dia Nacional de Defesa da Democracia, lembrando as ameaças sofridas pelo país, inclusive citando a não aceitação do resultado eleitoral pelo ex-presidente Bolsonaro. O senhor é a favor dessa iniciativa, assinou ou pretende assinar o manifesto? 

Sou não só a favor, mas um dos que articularam essas propostas ao longo de anos. Durante as minhas gestões na SBPC, isso era constante. Estar atento e defender, não recuar, é sempre muito importante, e preservar a memória, como eu dizia. Preservar a democracia é preservar todas as conquistas que alcançamos nesses últimos 200 anos. Senão surge a hipótese de que os direitos de homens e mulheres não sejam iguais para tarefas iguais. Os direitos humanos básicos têm sido questionados muitas vezes, mas por minorias, minorias muito ruidosas. Temos que lembrar a democracia. A democracia são os direitos humanos, a igualdade de homens e mulheres, o respeito às culturas diferentes, as oito horas de trabalho diário. É um conjunto de conquistas históricas que não podemos retroceder e percebemos, nesses últimos anos, que é possível acontecerem retrocessos. Houve retrocessos e agora estão sendo recuperados. 

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