Amazonas e Rondônia

Garimpeiros do Madeira acumulam 'licenças' inválidas para simular atuação legal

Garimpeiros apresentam requerimentos feitos solicitados na ANM, mas seguem na ilegalidade, pois, ambientalmente, não cumpriram nenhum dos requisitos, nem têm aval do Ipaam

Waldick Júnior
waldick@acritica.com
23/07/2022 às 09:34.
Atualizado em 23/07/2022 às 10:14

(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Parte dos garimpeiros que atua ilegalmente no rio Madeira tem se utilizado de requerimentos solicitados na Agência Nacional de Mineração (ANM) para simular uma “legalidade” na extração de ouro. A suspeita desse modo de operar foi apontada por fontes ligadas ao garimpo ouvidas por A CRÍTICA e confirmada pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão estadual de fiscalização.

(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 “Apesar de possuir Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), os garimpeiros seguem na ilegalidade, pois, ambientalmente, não cumpriram nenhum dos requisitos, como apresentação do Estudo de Impacto Ambiental com o respectivo relatório para o licenciamento. Documento este que o Ipaam está impedido pela Justiça de fornecer”, diz trecho da nota enviada à reportagem.

Em 2017, a Justiça Federal anulou licenças de garimpo concedidas pelo Ipaam a cooperativas que não possuíam estudo de impacto ambiental para as áreas que buscavam explorar.  

A Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), segundo o Ipaam, é o principal meio utilizado pelos garimpeiros ilegais para afirmar, ainda que seja inverdade, que há alguma autorização para a extração do ouro no rio Madeira.

Esse documento é obtido com mais facilidade pelos extratores em comparação a outras licenças. É o que explica o geólogo e pesquisador de minerais na Amazônia, Tiago Maia.

“O processo é menos burocrático, porque o normal é você requerer uma área e ainda pesquisar. Tem que gerar relatório e ter visita técnica da ANM para verificar se está tudo certo. Já na permissão para lavra garimpeira, você só delimita a área, diz qual bem vai ser extraído, extrai e já vende”, diz ele.

O que diz a ANM?

Para esta reportagem, a Agência Nacional de Mineração (ANM) informou existirem atualmente 643 processos minerários ativos no sistema do órgão que interferem diretamente no leito do rio Madeira. Os pedidos estão em maioria em Rondônia (543), por onde o rio Madeira entra no Brasil, e também no Amazonas (100), estado em que está localizada a foz do afluente, no município de Itacoatiara. 

Somando dados de ambos os estados, a fase de processo minerário com mais registro é a de “requerimento de lavra garimpeira”, justamente aquele considerado “mais fácil” pelos garimpeiros. Somente este tipo de pedido representa 77,60% de todos os processos minerários que interferem no rio Madeira. 

(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 Conforme a própria ANM, atualmente existem 50 permissões de lavra garimpeira (PLG) autorizadas em Rondônia e 12 no Amazonas, ao longo do rio Madeira. O órgão não especificou se todas se referem a minério de ouro.

Com esse documento, o passo seguinte seria os garimpeiros levarem as PLG para obter a licença do órgão estadual, mas o Ipaam garante que não há qualquer concessão ativa.

Além da PLG, há 22 processos minerários em andamento para requerer pesquisa de minério de ouro no rio Madeira. Os pedidos já autorizados no afluente são 13. Há também requerimentos para licenciamento (3), concessão de lavra (2) e outros. 

Nem todos os pedidos se referem a ouro. Alguns, ao menos no cadastro do sistema, pretendem explorar bauxita, sais de potássio e silvinita, dentre outros minérios e rochas.

Ilegalidade

Vale lembrar que os dados de requerimentos se referem apenas aos processos minerários acompanhados pela ANM. O comerciante Edevaldo Araújo Ferreira, de 38 anos, atuou como garimpeiro no rio Madeira no município de Manicoré (AM), entre os meses de junho a setembro de 2021, pouco antes da operação da Polícia Federal e Ibama que queimou mais de 131 balsas no afluente. 

“Há cinco, seis anos, a gente tinha uma cooperativa aqui, era como a gente tentava se regularizar. Mas a licença mesmo nunca teve. Na verdade, ninguém que eu conheço conseguiu autorização para trabalhar de forma legal”, diz ele.

O ex-garimpeiro conta ter desistido do ramo após a desmotivação sentida por ele ao ver as operações federais que destruíram as balsas no rio Madeira. Além disso, comentou que o valor pago por ele para obter uma balsa, R$ 60 mil, não foi recuperado com a extração do ouro na região.

“Agora eu tô parado. Deu uma desmotivação, de ver a lástima, de ver o prejuízo que a gente e outras pessoas pegaram [com a operação que queimou as dragas]. É muito trabalho, muito investimento. Levei minha mulher e meus filhos para lá e a gente não recuperou nossos gastos”, afirma o comerciante.

Pedidos recentes

 As solicitações de garimpo estão em todo o rio Madeira, mas pelas recentes notícias de dragas entre Nova Olinda e Autazes, chama a atenção que há pedidos datados de junho e julho para pesquisa de minério de ouro na área.

As datas aparecem no Sistema de Informações Geográficas da Mineração (SIGMINE), da ANM, e coincidem com o mesmo período em que houve aumento de denúncias de moradores locais sobre a presença de dragas de garimpo no local. 

“Eles dizem na cara de qualquer um que já estão legalizados”, disse uma moradora que vive numa comunidade às margens do Madeira em Nova Olinda do Norte. Ela falou à reportagem em 11 de julho, um dia após avistar cerca de 15 dragas de garimpo passando em frente onde mora.

Baixa fiscalização

A reportagem questionou a Agência Nacional de Mineração sobre como ocorre a fiscalização para garantir que as licenças não estão sendo usadas indevidamente. Em nota, o órgão afirmou que qualquer atividade extrativa mineral precisa de autorização da ANM ou do Ministério de Minas e Energia, mais licença do órgão competente (Ibama ou Ipaam). 

“Na forma da legislação minerária, uma cooperativa ou garimpeiro que detenha apenas um requerimento de Autorização de Pesquisa não pode pesquisar e nem extrair substâncias minerais, se o fizer, estará incorrendo em crime”, esclarece o órgão.

Embora tenha reiterado que apenas ter o requerimento não permite a mineração, a Agência não respondeu como fiscaliza, no rio Madeira, os pedidos feitos no sistema do órgão.

Esquema

No sistema da ANM, há diversas solicitações de junho e julho de pessoas físicas e de duas associações de garimpeiros, a Cooperativa de Garimpeiros da Amazônia e a Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tapajós. 

Segundo o fundador do Observatório da Mineração, Maurício Ângelo, é comum em todo o Brasil que associações de garimpeiros façam pedidos de lavra junto à Agência Nacional de Mineração para “simular” alguma legalidade na atividade. 

“Frequentemente eles se reúnem em cooperativas e registram vários pedidos, inclusive, em áreas proibidas. Fazem isso para dar um verniz de legalidade, para ter o que mostrar no caso de serem pegos em fiscalização, mas também contando que a lei irá mudar no Congresso, como é o caso do PL 191/2020, que autoriza a mineração em terras indígena”, comenta ele.

A reportagem entrou em contato com a presidente da Cooperativa de Garimpeiros da Amazônia, Tânia Oliveira Sena, mas ela preferiu não conceder entrevista sobre o tema. Procuramos também a Cooperativa do Tapajós, mas o único telefone ligado ao CNPJ da associação não completava a chamada.

Após denúncia do avanço das dragas de garimpo no Madeira, o Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) instaurou processo para investigar a atividade ilegal na região. 

Silêncio

Desde a primeira denúncia reportada por A CRÍTICA sobre o avanço das dragas de garimpo no rio Madeira, publicada em 11 de julho, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pela fiscalização na área, não respondeu a um pedido de nota da reportagem. 

Questionamos também a Polícia Federal sobre se há alguma ação em andamento para coibir o avanço das dragas no afluente, já que em novembro de 2021 o órgão garantiu que expandiria as operações na região.

A PF respondeu apenas que “as informações sobre operações presentes e futuras da Polícia Federal são totalmente sigilosas. Quando há a deflagração e, no caso, se for pertinente à sociedade, os jornalistas, cadastrados no mailing deste setor, são cientificados imediatamente através de nota à imprensa”.

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