DESESPERO

"Não somos bandidos": moradores da comunidade David Almeida imploram pelo direto à moradia digna

Ao menos 289 moradores vivem no local sofrendo intimidações e ameaças de perderem o pouco que possuem. Eles ocuparam a área na Zona Norte fugindo de constantes enchentes na região do 'Cemitério dos Índios'

Giovanna Marinho
online@acritica.com
22/03/2022 às 16:54.
Atualizado em 23/03/2022 às 09:08

Moradores nomearam a ocupação com o nome do prefeito de Manaus como forma de chamar atenção do poder público (Foto: Junio Matos)

Um amontoado de barracos se multiplica ao fim da avenida Nepal, no bairro Nova Cidade, Zona Norte de Manaus. O lugar, nos limites da Reserva Adolpho Ducke, foi tomado por famílias desesperadas que fogem da alagação frequente no período chuvoso e da dificuldade financeira agravada nos dois últimos anos, em decorrência da pandemia de Covid-19.

A surpresa bateu no último sábado na porta de A CRÍTICA, quando um grupo de pessoas desesperadas relataram a situação que 289 pessoas estão passando há ao menos duas semanas. O medo de uma reintegração de posse e os boatos espalhados pelas redes sociais de que a ocupação estaria sendo encabeçada por grupos de criminosos levaram os moradores a buscar os veículos de imprensa.

Comunidade David Almeida, onde os moradores encontraram a possibilidade de fugir das enchentes (Foto: Junio Matos)

Até o nome do local soa como um pedido de socorro. A comunidade David Almeida foi nomeada não como uma homenagem ao prefeito da capital amazonense, mas como uma forma de chamar a atenção do poder público para a necessidade de ampliação das políticas de habitação.

A área já havia sido desmatada há quatro meses e as famílias que antes habitavam a beira do igarapé na região do Nova Cidade, conhecida como Cemitério dos Índios, encontraram lá a esperança de ter um lugar para viver após a chuva levar quase tudo o que tinham. Naquela ocasião, segundo o relato dos moradores e registros fotográficos, a água chegou à altura do peito.

A situação foi a gota d’água para mães como a autônoma Sara Kethelen Pimentel, 21 anos. Com o filho de 2 meses no colo, ela conta que todos os produtos de perfumaria que ela vendia, assim como móveis e eletrodomésticos, foram levados pela enchente. O pouco que tem no barraco, construído com pedaços de pau e lona, são provenientes de doações, inclusive as poucas coisas que tem para o bebê. O dinheiro que o marido ganha com bicos de pedreiro mal dá para comprar comida.

“Eu perdi o fogão, perdi a geladeira. Meu filho nasceu prematuro. A gente está na luta aqui, às vezes na chuva, no sol. Como a gente não tem dinheiro para comprar as coisas, isso aqui foi doação. Meu filho não tem berço, não tem roupa, não tem nada. Como não estamos trabalhando, meu filho nem tem fralda para usar. Às vezes ficamos sem comer e eu não posso produzir leite se eu não comer”, contou a jovem.

A jovem Sara Kethelen Pimentel, de 21 anos e com o filho de 2 meses no colo, conta como perdeu tudo para enchentes (Foto: Junio Matos)

Para manter o mínimo de higiene pessoal, eles recorrem aos vizinhos e à água da chuva recolhida em bacias dos buracos do teto feito à lona. Com os olhos marejados, a jovem mãe relata que, assim como as outras famílias que lá habitam, não tem para onde ir e teme perder o pouco que tem devido a ameaças de alguns policiais aos moradores.

“Os policiais, que se dizem policiais, vieram aqui de madrugada e soltaram uma bomba [efeito moral] que assustou eu e meu filho. Eu não sei porque fizeram isso. Era meia noite. Eles chegam gritando com a gente como se fossemos um bando de animal. Uma coisa que a gente não é. Se não precisássemos, não estaríamos aqui lutando e dando a nossa cara a tapa para conseguir um pedacinho de terra. Tem uns que realmente vem e conversam com a gente, mandam a gente regularizar, outros não. Chegam atirando, tentando intimidar a gente, mas não temos para onde ir”, disse Sara, já com a voz embargada.

Na divisão feita pelos moradores, as casas possuem medidas de 8x10, segundo a presidente da comunidade, o suficiente para que todos possam viver com dignidade. Eles afirmam que não há venda de terrenos ou qualquer forma de grilagem e o critério para juntar-se ao grupo é a necessidade. Quem habitava a região alagadiça de onde vieram mais de 90% dos moradores, tem prioridade.

O espaço é mais do que justo na opinião da autônoma Raquel Furtado de Carvalho, de 23 anos. No barraco que ela divide com as duas filhas e o esposo existem quatro redes, uma geladeira e uma TV de tubo, tudo que conseguiu salvar da alagação. Antes de chegar à ocupação, a família morava de favor e não suportava mais a cobrança para que saísse do local.

Os quatro foram então para a área do Cemitério dos índios, onde alagou e na comunidade David Almeida viram a oportunidade para ter onde morar. Ela vive do que ganha com a venda de picolé e din din nas ruas da cidade e o esposo é pedreiro. Na fase mais dramática da pandemia, ela afirma que a família sequer tinha o que comer. Agora com o Auxílio Brasil e a renda das vendas, consegue ao menos colocar a comida na mesa, mas não vê alternativas para, por exemplo, pagar um aluguel.

“Se Deus quiser, vamos ter a oportunidade de ter um cantinho nosso. A gente se inscreve para conseguir uma casa, mas não tem. Eu fui atrás e disseram para mim que nem estavam mais fazendo cadastro porque eram muitas pessoas na fila de espera. Como que fica? Para nós ficou muito ruim, porque ele trabalha de pedreiro e agora não está tendo muito trabalho devido à chuva. A gente chegou até a passar necessidade. Tinha dia que a gente não tinha nada. Eu fico pensando nas minhas filhas. Por isso fomos até vocês, estamos desesperados”, declarou a autônoma.

A autônoma Raquel Furtado de Carvalho, 23, no barraco que ela divide com as duas filhas e o esposo (Foto: Junio Matos)

“Estamos tentando construir alguma coisa aqui porque está difícil. Meu marido está desempregado, ele é pedreiro. Estamos nos unindo, eu e meus filhos, para ver se conseguimos viver. Lá não tem condições de viver, com crianças principalmente. Eu fui lá fazer a limpeza [do terreno], tinha até plantado algumas coisas, mas não tem condições, alaga muito. A água quando vem, leva tudo. Aqui tem mais segurança porque a terra é firme. Não alaga. Tem muita criança. Muita gente ficou desabrigada”, ressaltou Arlene dos Santos de Oliveira, 48 anos, costureira. 

A costureira Arlene de Oliveira explica o motivo de terem saído da antiga comunidade

A reportagem de A CRÍTICA questionou o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) sobre a veracidade dos limites da Reserva Adolpho Ducke não estarem sendo ultrapassados. Os moradores contam que frequentemente pessoas ligadas ao órgão tem visitado a comunidade para verificar a demarcação. Segundo eles, há uma distância de 3 metros marcada por uma cerca que eles têm mantido, além disso, os resíduos não têm sido incinerados para preservar a reserva. Até o momento, o Inpa não se pronunciou sobre o caso.

A Secretaria Estadual de Habitação (Suhab) também não respondeu às afirmações de que não estaria recebendo novos cadastros para concessão de casas e nem quais os planos de habitação vigentes na capital. 

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma) e a Prefeitura de Manaus também não se posicionaram sobre o caso. Bem como o Ministério Público, que também foi questionado pela reportagem.
 
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) se limitou a dizer que "invasões em áreas públicas são de responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente, em ação conjunta com o Grupo Integrado de Prevenção a Invasões em Áreas Públicas (GIPIAP)", mas não justificou as ações policiais citadas pelos moradores da comunidade David Almeida. Estamos à disposição para receber os esclarecimentos.

(Comunidade David Almeida. Foto: Junio Matos)

(Comunidade David Almeida. Foto: Junio Matos)

(Comunidade David Almeida. Foto: Junio Matos)

Comunidade do Alagadinho, antigo local de moradia dos moradores que hoje estão na comunidade David Almeida. Local sofria com enchentes causadas pelas chuvas. (Foto: Junio Matos)

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