Em sua nova obra, Eduardo Góes Neves alerta: Não é pré-história o que ocorreu por essas bandas tropicais antes de 22 de abril de 1500. Temos, sim, uma História Antiga da Amazônia e sua gente. Precisamos conhecer, entender e comunicar antes que seja tarde demais e os vestígios do passado sejam massacrados pela brutalidade do presente
Rio Amônia, no Acre, em área ao sul da aldeia Apiwtxa (Sebastião Salgado/Divulgação)
No coração de Manaus, na praça de São Sebastião, o mais importante arqueólogo estudioso da Amazônia no Brasil, Eduardo Neves, lançou recentemente seu novo livro intitulado "Sob os tempos do Equinócio - Oito mil anos de História na Amazônia Central", publicado pela editora Ubu, com apoio da Edusp e Fapesp.
Despretensioso como tudo o que é realmente importante nessa vida, o encontro ocorrido numa noite quente do verão manauara na charmosa Banca do Largo, especializada em livros sobre a Amazônia, provocou uma inquietação e um chamado para nossa arraigada ignorância.
Ao mesmo tempo que nos deparamos diariamente com notícias terríveis da destruição avassaladora da maior floresta tropical do mundo, nos chega esta obra, que traduz e atualiza para o público em geral a pesquisa arqueológica feita na Amazônia.
"As descobertas do autor e de seus colegas revelam, a partir de ecofatos, uma floresta que teve conjuntos populacionais maiores do que muitas cidades amazônicas de hoje e que foi palco de uma das mais antigas produções de cerâmica das Américas", escreve a jornalista e escritora Eliane Brum a respeito do livro.
Grandes populações indígenas que sempre habitaram a floresta conviveram por séculos neste bioma sem destruí-lo. Para além da convivência harmônica, colaboraram com a criação da floresta tal qual a conhecemos hoje, nos deixando como legado um bioma que é fonte de vida e equilíbrio climático para todo o planeta.
Entretanto, a Amazônia, segundo Eduardo, sempre esteve "sob o signo da incompletude" do ponto de vista do colonizador e do olhar eurocêntrico. "A ideia de que algo sempre faltou à Amazônia e seus povos: a agricultura, o Estado, a história, as cidades, a escrita, a ordem e o progresso".
Nos conta Eduardo: "é notável como, desde o século XVI, o uso da preposição "sem" tem sido utilizado com frequência para designar os povos e a natureza aqui encontrados pelos europeus, como na clássica formulação de Pero de Magalhães Gândavo sobre os Tupinambá: povos "sem fé, sem lei, sem rei".
Hoje, o discurso político totalitário remete à mentalidade da Ditadura, quando a Amazônia era considerada um deserto verde, um vazio demográfico a ser habitado. A incapacidade de entender e conhecer, essa truculência de origem colonial, vigora até os dias atuais.
Os discursos ainda hoje estão focados na falta, na incompletude como diz o arqueólogo. Ao desconhecer a História antiga desse lugar e das pessoas que aqui viviam antes de nós, estamos fadados, como sociedade, a cometer muitos erros e injustiças. Destinados a perpetuar modelos violentos e predatórios, sem ter sequer consciência do que foi o passado desse lugar.
Para se buscar novos caminhos, é nítido que precisamos ouvir a memória, a história daqueles que resistiram a séculos de violência e massacre. Como viviam as pessoas antes da invasão colonial? Quais línguas falavam, como era a agricultura, o comércio, a cultura e suas relações de troca?
É preciso que a gente faça mais perguntas para termos melhores respostas. Neste sentido, como explica Neves, "nenhum campo do conhecimento é tão bem equipado para entender em escalas temporais milenares ou centenárias como se constituíram as relações entre nossa espécie e a natureza". A arqueologia, nos mostra o livro, pode nos guiar para mais próximo da verdade, ao nos livrar da ignorância, do desconhecimento e do preconceito.
Com a crise socioambiental sem precedentes que vivemos e a velocidade imposta aos ciclos da vida pelo Antropoceno (época geológica atual caracterizada pelo impacto do ser humano no planeta), urge trazer à tona o debate sobre a História Antiga da Amazônia.
Há cerca de um mês, em Berlim, foi inaugurada a ala da Amazônia em um dos maiores espaços de exposição sobre as culturas do mundo e a História Humana, o Humboldt Forum. Peças coletadas por Theodor Koch-Grunberg, primeiro etnógrafo europeu a viajar pelo Noroeste amazônico, estão expostas no museu, por exemplo, revelando o conhecimento, a cultura e o passado dos povos indígenas na Amazônia.
Para essa inauguração em Berlim estiveram presentes dois indígenas do Amazonas, da região do Rio Negro: Rogelino Azevedo, do povo Tukano, e Damião Barbosa, Yeba-Masã, que contaram sobre suas culturas e História para uma plateia internacional ávida em saber mais sobre a Amazônia. Ambos saíram de São Gabriel da Cachoeira, município mais indígena do Brasil, para compartilhar seus saberes na Alemanha.
Acompanhados pelo antropólogo Aloisio Cabalzar, que há mais de 30 anos estuda a cultura dos povos do rio Negro, esse movimento revela o interesse e a abertura de parte do mundo em rever certezas, refazer caminhos e reparar a história tal qual ela vinha sendo contada.
Uma coisa é certa: não podemos mais avançar sobre a floresta, destruindo não só o meio ambiente, quanto também as culturas, as pessoas, a memória e a nossa própria história como espécie. Neste momento crucial para o Brasil, temos que optar pela preservação da floresta amazônica viva, por modelos socioeconômicos que dialoguem com a História desse lugar e de sua gente.
Já que Eduardo nos falou sobre o signo da falta que sempre rondou as "ditas verdades e soluções sobre a Amazônia", podemos dizer que sem educação, pesquisa, ciência e arqueologia não podemos continuar. Isso é o que tem de fato faltado, não somente no Norte, como em todo o Brasil. A manutenção de uma mentalidade obscurantista, negacionista, imediatista e consumista nos levará de fato ao ponto de não retorno, não só da Amazônia, conforme alertam os cientistas, como nosso próprio, como seres humanos.
*Juliana Radler é jornalista com especialização em meio ambiente e analista de políticas socioambientais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)