CARNE CULTIVADA

E se a tecnologia puder colaborar na preservação de espécies ameaçadas?

Desenvolver carne cultivada de animais exóticos da Amazônia, como o Peixe Boi, é uma abordagem que pode ser certeira

Por Alexandre Cabral*
15/08/2023 às 11:02.
Atualizado em 15/08/2023 às 11:05

A iguaria mais conhecida do peixe boi é a mixira (carne do animal conservada na própria gordura) (Shutterstock)

É comum encontrarmos na mesa da maior parte dos brasileiros pratos com variados tipos de cortes de carnes de boi, frango, porco, pescados e frutos do mar. Não à toa, quase a totalidade das iniciativas que visam produzir carne cultivada se concentram nesses animais para criar seus primeiros protótipos, como no caso do Brasil, e para criar seus produtos finais já disponíveis para venda, como em Singapura e nos Estados Unidos. No entanto, uma parcela significativa da população global tira seu sustento e se alimenta da carne de animais exóticos, inclusive os ameaçados de extinção. Na Amazônia brasileira não é diferente. Ao longo dos anos, diversas ações foram tomadas para tentar conter a caça ilegal, mas os recentes avanços tecnológicos, científicos e regulatórios no mercado de proteínas alternativas, agora, nos permite pensar: e se uma das soluções passasse pelo cultivo celular dessas espécies?

Desenvolver carne cultivada de animais exóticos da região, como o Peixe Boi, é uma abordagem que, por contemplar as características e peculiaridades da região, pode ser certeira. Sempre que lidamos com um negócio baseado na floresta, é importante não transpor modelos e, sim, ouvir a realidade socioeconômica local para entender como nossas ações podem contribuir da melhor forma. Não parece fazer sentido multiplicar células de bovinos ou aves em cidades amazônicas, mas, quando observamos a sociobiodiversidade da região, percebemos que as novas tecnologias podem colaborar positivamente no processo de preservação de espécies nativas ameaçadas pela caça ilegal.

Pensar na possibilidade de um modelo de negócio em que se produza carne de espécies exóticas vulneráveis da região por cultivo celular, retornando parte da receita desse produto para a própria preservação da espécie, faz sentido porque gera um ciclo virtuoso. Nele, quanto mais se come carne cultivada do animal, mais se ajuda na preservação de sua espécie. Esse modelo inverteria a lógica existente na relação de comércio de espécies selvagens, chamada de wildlife trade, onde quanto mais se consome a carne do animal, mais se estimula a caça. O artigo científico “Cultivated Manatee Meat Aiding Amazon Biodiversity Conservation: Discussing a Proposed Model”, de minha co-autoria e publicado na edição de maio do Periódico Conservation, propôs e explorou esse cenário:

O artigo é produto da reflexão conjunta de um grupo de pesquisadores envolvidos com o tema da carne cultivada no Brasil e no exterior, que inclui a UFPR, o GFI e a UFAM. Tivemos como objetivo capturar a complexidade deste debate,  uma vez que replicar modelos de negócio já existentes não seria suficiente. Além disso, um dos focos principais do trabalho foi analisar as escutas da região e agrupar uma riqueza de percepções sobre as formas mais adequadas de produzir carne cultivada de espécies amazônicas. Uma das conclusões propostas no artigo é a necessidade de descolar o produto da cultura amazônica de alimentação. O que isso significa? A iguaria mais conhecida do peixe boi é a mixira. Se esse prato for reproduzido com carne cultivada e vendido em outro país a um preço alto, pode-se gerar um estímulo para o consumo local da iguaria obtida através do abate do animal. Para evitar esse efeito rebote, entendemos que o ideal é que o produto final não guarde relação com os usos típicos regionais (como assados, sopas e mixiras), mas que seja apresentado em formatos pouco conhecidos no consumo tradicional, como patê e carpaccio, por exemplo.

Embora o negócio de multiplicação de células envolva grandes investimentos em instalações industriais e uma complexa cadeia de fornecimento de insumos, a oportunidade do desenvolvimento de um empreendimento em torno da produção de linhagens celulares de espécies amazônicas, que é a etapa anterior à multiplicação, pode ter uma demanda de investimento e expertise que a torne viável na região. Fomentar o desenvolvimento do ecossistema de carne cultivada no Amazonas pode ser crucial para inserir o estado no circuito de desenvolvimento sustentável tão desejado por governos e estimulado por fóruns internacionais, como foi na COP 27. Valorizar a bioeconomia regional é garantir que a comunidade vá se beneficiar econômica, social e ambientalmente com a emersão de uma bioindústria alinhada com a mitigação dos efeitos climáticos e a preservação da fauna e flora brasileiras.

 * Alexandre Cabral é Vice Presidente de Políticas Públicas do The Good Food Institute Brasil

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