OPINIÃO

Ennio partiu repleto de sonhos

Fundador do Musa nos deixa a lição de que a ciência é um imunizante contra a devastação e também veículo de manutenção da floresta e do desenvolvimento de suas populações

Rosiene Carvalho
Especial para A Crítica
15/12/2023 às 12:13.
Atualizado em 15/12/2023 às 16:21

(Junio Mattos)

“Não desistam! A floresta é ouro. Precisamos aprender a metalurgia do ouro. Sem essa metalurgia ou exportando essa metalurgia seremos sempre expropriados. E a floresta não é apenas um sorvedouro de carbono. Ela é muito, muito mais que isso. É a história da humanidade, da vida no planeta que está armazenada nesses seis milhões de quilômetros quadrados”. 

Com esse apelo, o cientista Ennio Candotti encerrou a entrevista concedida ao programa Exclusiva da rádio BandNews Manaus, no dia 19 de novembro de 2021. Ao exortar a todos e todas que o ouviam, acenou com um tchau e um sorriso.

Na entrevista, Candotti desenhou a importância do investimento em pesquisa científica e a produção de conhecimento na e sobre a Amazônia. Essa sempre foi uma conduta do pesquisador em qualquer ambiente em que se encontrasse. Naquele 19 de novembro, posicionou-se sobre o negacionismo que levou Manaus, a capital mais populosa da região Norte, a dois colapsos do sistema de saúde durante a pandemia de covid-19. A ciência é um imunizante à devastação e é veículo de manutenção da floresta e desenvolvimento de suas populações, disse Candotti.

Aos 81 anos, com mais de 50 anos dedicados à ciência e aos menos 15 morando na Amazônia - com base em Manaus - o físico Ennio Candotti morreu no dia 6 de dezembro, em plena atividade intelectual e física. O velório ocorreu na sexta-feira, dia 8, no Musa (Museu da Amazônia), idealizado e fundado pelo cientista. 

Ennio Candotti mantinha agenda completa de compromissos e de sonhos para realizar.  Participava ativamente de reuniões presenciais e virtuais, em vários pontos do País, onde apresentava o seu pautão/plano de ação: o desenvolvimento do conhecimento científico na Amazônia, a utilização inteligente do potencial institucional que a Amazônia dispõe. Familiares, amigos e funcionários do Musa relatam que, quando estava em Manaus, subia diariamente a torre de 42 metros do local. 

Ao longo da sexta-feira, a comunidade acadêmica, instituições de pesquisa, familiares, amigos, admiradores e funcionários do Musa, emocionados, se despediram do pesquisador com palavras de reconhecimento à sua dedicação à ciência, à democracia e à Amazônia, em seu velório em Manaus e por meio de várias publicações na internet.

A causa da morte não foi divulgada pela família. O corpo de Ennio Candotti foi cremado. O pesquisador deixa o filho, o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e sociólogo Fábio Candotti, e a mulher, a física Maria Elisa da Costa Magalhães. 

Trajetória

Ennio Candotti nasceu na Itália e ainda criança se mudou com os pais para o Brasil, em 1952.

Segundo nota da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), trazendo consigo um livro que havia ganhado de presente do avô “Este Mundo Grande e Terrível”, cuja autora, Ginestra Amaldi Giovene, foi pioneira na divulgação científica em seu país de origem. 

A vida estudantil e acadêmica de Ennio Candotti foi escrita por meio de instituições de ensino públicas brasileiras como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Ufam.

Exaltado com um dos mais incansáveis e ativos defensores da política científica do País, Ennio Candotti presidiu por quatro mandatos a SBPC - 1989-1991, 1991-1993, 2003-2005 e 2005-2007. Segundo nota da SBPC, lamentando sua morte, Ennio Candotti foi o único, em mais de 70 anos, a liderar por quatro vezes a entidade.

Da SBPC, por seus relevantes e destacados serviços à ciência, se tornou presidente de honra em 1999. No mesmo ano, ganhou o prêmio Kalinga, concedido pela Unesco em função da atuação para a popularização da ciência. Em 2002, ajudou a fundar a União Internacional de Divulgadores Científicos, com sede em Mumbai, na Índia.

De acordo com o relato da professora Marilene Corrêa, Ennio Candotti foi importante na refundação da Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura, canal público. 

Atuante do campo democrático, na década de 1970, Ennio Candotti se posicionou contra políticas de governos militares e, nesse período, se aproximou da SBPC. Candotti conduziu e articulou com a comunidade científica e organizações sociais “o primeiro pedido de impeachment contra um presidente acusado de corrupção”, Fernando Collor, registrou a SBPC em nota de pesar pela morte do físico. 

Em 2022, em evento pró-democracia e a floresta, o Musa recebeu o então candidato à presidência da República, Lula que, nas trilhas do museu, dançou com indígenas, posou para fotos com árvores centenárias e se comprometeu com projetos de desenvolvimento que não representassem os mesmos danos que a hidrelétrica Belo Monte, no Pará. 

Na ocasião, recebeu das mãos de Ennio Candotti um manifesto chamado “Recado das árvores” que falava sobre os mais de 300 milhões de anos de serviços prestados à vida no planeta e a revolta com a ingratidão do “desumano mundo dos humanos”.

O pesquisador liderou movimentos para criação de processos de institucionalização da ciência no Brasil como o Ministério de Ciência e Tecnologia e a expansão da rede de Fundações de Amparo à Pesquisa por todos os estados brasileiros, como lembrou, na sexta-feira, a pesquisadora da Ufam Marilene Corrêa, em discurso durante o velório, em nome da SBPC regional.

Corpo e alma

Candotti envolveu-se de corpo e alma para liderar uma nova frente do desenvolvimento da política científica brasileira: aproveitamento e investimento nos institutos de pesquisa e tecnológicos já implantados por toda a Amazônia e integração do conhecimento científicos com outros países da bacia amazônica.

“No interior, na Amazônia inteira, tem 300 campi das universidades federais e estaduais. Isso é formidável! Isso se implantou há 15 anos. Eu ainda era jovem (sorriu). E hoje está dando fruto. Só que essas pessoas que estão no interior e poderiam fazer uma revolução na Amazônia precisam de ciência, de saúde, de internet e de estrutura para fazer funcionar o todo”, afirmou o presidente do Musa no Museu Goeldi, em Belém, no dia 8 de agosto, em entrevista à coluna de política da rádio BandNews Manaus. 

Na ocasião, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação anunciara investimentos da ordem de R$ 3,4 bilhões entre 2024 e 2026 no programa Mais Ciência na Amazônia. Candotti reconhecia ser um importante primeiro passo, mas cobrou promessas antigas da ordem de R$ 10 bilhões anuais.

“Precisamos formar gente: engenheiros, físicos, químicos, antropólogos, sociólogos, sanitaristas, jornalistas. A Amazônia é muito grande. Essa tarefa de formar gente ainda está longe de ser completa”, destacou na mesma entrevista.

Em outra entrevista, na Semana de Meio Ambiente, ao programa Exclusiva da rádio BandNews Manaus, no ano passado, Ennio Candotti reforçou que a região precisava de 100 vezes mais formação em todas as áreas de conhecimento porque o processo de desenvolvimento da Amazônia passava pela construção do desenvolvimento social. 

Lembrou, em entrevista de 2021 ao Exclusiva, que: “nunca foi pensado um sistema de saúde na Amazônia que não fosse apenas uma cópia do sistema de saúde do sul com ecossistemas completamente diferentes, com culturas diferentes. Como pode, em pleno século 21, a arquitetura das casas no interior não deixar as pessoas menos vulneráveis às cheias? A cultura amazônica não foi ainda pensada com suas peculiaridades, como amazônica”.

Para Candotti, o desmatamento avança na região por ignorância de quem devasta e do desconhecimento da população que aqui vive sobre o valor da floresta em pé. “Ninguém desmatava quando a borracha era um item importante na economia da região. Hoje, se desmata por pura ignorância. Por não ter alternativa”, afirmou na entrevista do ano passado ao programa Exclusiva. 

“A própria sociedade amazonense nunca foi informada devidamente do valor, do tesouro, do patrimônio que encontramos nessas terras. Quando digo a sociedade não digo os que moram em prédios de dez andares, estou dizendo os povos que habitam o interior e as periferias das cidades e aqueles que dizemos estar mal informados ou por darem ouvidos às informações falsas ou terraplanismos, a cloroquina, etc. Falta a atenção para uma Amazônia hoje desprezada, senão teríamos hoje uma sociedade revoltada com as queimadas”, declarou durante palestra virtual na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2021.

O empenho em formar uma sociedade mais próxima do conhecimento científico se materializou por meio da criação da revista científica “Ciência Hoje” e “Ciência Hoje para crianças”, além de sua versão na Argentina “Ciência Hoy”. Segundo o CNPq, Candotti foi editor da revista entre 1982 e 1986.

Na gestão dele na SBPC, vários encontros nacionais e regionais foram realizados nos Estados da Amazônia. Em um deles, penso que em 2004, fiz minha primeira importante entrevista, ainda como universitária do curso de Jornalismo na Ufam, e tive o primeiro contato com o professor Ennio Candotti. Em quase 20 anos, o entrevistado sempre me causou impressões de respeito, generosidade e de estar muito à frente da atualidade. Um semeador de inquietações, um prospector de aliados, por toda parte.

Ideia hoje é real

No encontro da SBPC em Belém, em 2007, surgiu a ideia de desenvolver na Amazônia um museu e centro de desenvolvimento de pesquisa a partir de diálogos com a então primeira secretária de Estado de Ciência e Tecnologia do Amazonas, Marilene Corrêa. 

O pesquisador conheceu museus que tentavam reproduzir aos visitantes, na Europa, o contato com a floresta amazônica. “Visitei alguns museus na Europa que tinham salas específicas para reconstituir a Amazônia. Mas era uma caricatura. Tem as plantas, não tem os insetos. Não tem formiga. Imagine: você entrar numa floresta que não tem os ritos. Não é floresta”, disse Candotti em entrevista à BandNews Manaus, em 2021.

O convite foi aceito e, prestes a se aposentar, Ennio Candotti se mudou com toda família para Manaus. Em 2009, nasceu o Musa. O italiano, naturalizado brasileiro e cientista renomado dentro e fora do País, abriu mão da aposentadoria para, nas palavras do filósofo e professor da Ufam José Alcimar, se fazer caboco. 

“Me convidaram para vir dirigir a orquestra. Estava para me aposentar, me aposentei da Física e vim dirigir a orquestra. Na época, eu tinha 70 anos e acreditava ter 20. Descobri que 70 são diferentes de 20 e aqui estou tentando pagar a conta do fim do mês”, relatou com bom humor a realidade de manter um museu a céu aberto sobre a Amazônia em Manaus. 

No dia 21 de agosto de 2019, recebeu o título de cidadão do Amazonas, proposta do então deputado estadual e amigo pessoal Serafim Corrêa (PSB). “Essa homenagem me sensibiliza muito. Sinto também que me atribui mais responsabilidades naquilo que estou construindo. Agora, sou parte da grande família do Amazonas. A Assembleia do Amazonas me deu o direito de criar raízes nessa terra”, declarou o cientista durante a homenagem.

Desafios atuais

A pandemia foi um período delicado para o Musa, que sobrevive do caixa de suas visitações e doadores. O museu, para evitar ser vetor de transmissão da covid-19 em Manaus, ficou de portas fechadas por dez meses e enfrentou sérias dificuldades para manter a folha de pagamento e a manutenção do espaço, em que pese seus gastos mensais serem, na ocasião, da ordem de R$ 120 mil a R$ 150 mil. 

Órgãos e gestores públicos no Amazonas se mantêm alheios à importância do museu, que representa a fronteira entre a devastação e floresta em Manaus, na reserva florestal Adolfo Ducke. Segundo local mais visitado por turistas na cidade (70 mil visitantes por ano), as ruas e avenidas que levam ao Musa e passam pela periferia da capital amazonense são de péssima manutenção e pouco reforço na segurança pública. 

O roteiro de turismo da cidade não inclui o Musa e os próprios manauaras não conhecem o traço amazônico de Manaus, embora haja programas de incentivo à visitação do museu pensados por Candotti.

Em artigo sobre o “Viver juntos no Musa”, Ennio Candotti descreve o local como um “museu vivo” com suas árvores centenárias e diversidade de formas de vida que guardam a história natural. Destaca o professor que o Musa foi estruturado para oferecer em suas trilhas, exposições e na torre de 42 metros para observação da floresta a experiência com as plantas, os pássaros, insetos, flores e polinizadores. O contato próximo permite aos visitantes a percepção dos personagens concretos da floresta que “tocam juntos a música da vida, da reprodução, da seleção e da adaptação, da conservação e da mudança”.

O Musa também, segundo o físico, possibilita o contato com um museu imaginário, onde os personagens esperam ser descobertos para poder existir. “Oferecemos ao viajante, visitante atento, trilhas e observatórios encantados, que o aproximam a personagens da floresta que buscam ser descobertos, vistos, para existir no museu. Personagens à procura de um autor”.

A famosa frase de Guimarães Rosa “As pessoas não morrem, ficam encantadas” ganha especial significado com as visões do professor Ennio Candotti sobre a floresta e o Musa e a explicação que pedi ao tuxaua e vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Enock Taurepang. 

Segundo o líder indígena, a expressão “se encantou” - usada por povos originários para descrever a morte do corpo físico – exprime que aqueles que lutam pela natureza e humanidade “se transformaram em algo maior e que de alguma forma continuam a ajudar e olhar por nós” no mundo espiritual dos encantados da floresta.

“O mote do projeto Musa é encantar para descobrir os personagens da floresta e com eles ‘viver juntos’, humanos e não humanos, a aventura do conhecimento”, descreveu Ennio Candotti.

Assuntos
Compartilhar
Sobre o Portal A Crítica
No Portal A Crítica, você encontra as últimas notícias do Amazonas, colunistas exclusivos, esportes, entretenimento, interior, economia, política, cultura e mais.
Portal A Crítica - Empresa de Jornais Calderaro LTDA.© Copyright 2024Todos direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por