Entrevista

‘Invenção do marco temporal é uma narrativa perversa’, afirma indígena do povo Yepamahsã

Doutor em antropologia social, João Paulo avalia as derrotas sofridas pelo movimento indígena em uma série de votações realizadas, nessa semana, na Câmara dos Deputados

Waldick Junior
waldick@acritica.com
04/06/2023 às 11:00.
Atualizado em 04/06/2023 às 11:00

João Paulo Tukano comentou sobre a aprovação do Projeto de Lei 490/2007 (marco temporal) e a Medida Provisória 1.154 (Paulo Bindá)

Graduado em Filosofia e doutor em Antropologia Social (Ufam), João Paulo Tukano avalia que a série de derrotas do movimento indígena na Câmara dos Deputados é resultado de uma “política de usurpação” com viés racista contra as populações tradicionais.

Em entrevista para A CRÍTICA, ele comentou sobre a aprovação do Projeto de Lei 490/2007 (marco temporal) e a Medida Provisória 1.154, que estabelece a estrutura do novo  governo e foi alterada pela Câmara para retirar competências do Ministério dos Povos Indígenas. Confira abaixo. 

Nessa semana tivemos perdas consideráveis para o movimento indígena, especialmente a aprovação do marco temporal na Câmara dos Deputados e a retirada de competências do Ministério dos Povos Indígenas na medida provisória de estruturação do governo. O que essas derrotas significam?

Essas práticas de colocar os povos indígenas como problema ao desenvolvimento não são novas. Isso faz parte de uma estrutura ideológica de uma dominação, de usurpação e de uma sociedade racista. O Brasil, como Estado, sempre tratou os povos indígenas dessa forma, usurpando nossos direitos. Não há como dizer que temos um bom governo num período e outro ruim em outro momento. É o próprio sistema que funciona assim, praticando políticas de usurpação de direitos dos povos indígenas. 

Essas medidas foram aprovadas por um congresso mais à direita, conservador. É um ambiente com quase nenhuma representatividade indígena. Dos parlamentares do Amazonas, estado mais indígena do Brasil, nenhum pertence a um povo originário, por exemplo. Qual a causa dessa subrepresentatividade?

Nós nos orgulhamos de viver num país democrático, mas essa democracia é uma fachada. Quem detém o poder tem possibilidade de dominar e ocupar esses espaços, é a sociedade que detém o poder econômico. Nesse sentido, a bancada de parlamentares, seja do Amazonas ou outro lugar, quem está no poder são os que detém o poder financeiro. Não há como a gente dizer que os povos indígenas não têm participação, não tem representatividade, porque não temos poder financeiro, assim como os pobres. Nosso país, lamentavelmente, é fundado a partir dessa lógica de poder econômico e de ideologias ligadas à direita. A direita nada mais é do que essa classe dominante que sempre esteve presente no poder. 

O marco temporal agora vai para o Senado, onde o presidente Rodrigo Pacheco já disse que tramitará com mais calma e garantindo a escuta dos indígenas. Depois, o presidente Lula pode aprovar ou vetar. Por que esse critério para demarcação das terras é prejudicial? 

A invenção do marco temporal é uma narrativa perversa, que manifesta o racismo do Brasil como ideologia implícita de uma camada da sociedade. E essa camada detém todas as instituições, a educação, as instituições religiosas, que são seus mecanismos para persuadir exatamente essa perversidade de dizer que o marco temporal seria uma lei que declara  explicitamente o racismo contra os povos indígenas.

Portanto, o parlamento brasileiro declara explicitamente que o Brasil é racista, que é um país incapaz de promover o diálogo em suas diferenças, e que escolhe assumir conscientemente o racismo, a discriminação aos povos indígenas por meio dessa narrativa do marco temporal. E tudo isso para justificar apenas a concepção de que a terra, a floresta e a água são recursos para gerar riquezas. Portanto, aí entra o poder financeiro novamente.

Os povos indígenas entendem as terras de maneira diferente. Para nós, a terra é parte do nosso corpo, portanto, um território, assim como a terra, a água e os humanos que nela habitam. Esses ambientes são espaços onde habitam outros humanos que não nós, são o que chamamos de Wai-Mahsã, que são pessoas que habitam esses locais sob outras condições, com os quais nós, humanos, interagimos, nos comunicamos e aprendemos com eles. Essa nossa concepção é o que nos constrói e nos faz construir a nossa relação com nosso entorno. Não olhamos a terra como recurso.

Outra derrota para os indígenas foi o esvaziamento do ministério por meio da Medida Provisória 1.154, de estruturação do governo. A política de demarcação de terras, por exemplo, saiu do MPI e foi para o Ministério da Justiça, onde era antes. Analistas políticos avaliam que essa ação foi proposital, para diminuir o poder político da pasta, assim como fizeram com  Marina Silva e o Ministério do Meio Ambiente. O que isso representa para o senhor?

Vamos ter que entender que essas iniciativas são armadilhas do próprio sistema. Por quê? Porque na medida em que você oferece uma coisa, cria a possibilidade de os indígenas ocuparem essas instâncias e você não dá condições financeiras para isso, você automaticamente impossibilita o trabalho. Estamos atentos a essas armadilhas, de não cair nessa narrativa de que o governo está sendo bonzinho, que é defensor dos povos indígenas, do meio ambiente. Não, são armadilhas que ficam explícitas quando o próprio parlamento começa a mostrar a sua cara. Esse esvaziamento faz parte desse sistema dominante.

A gente tem um governo que criou o MPI e se mostra mais sensível à causa indígena. Nesse contexto, tivemos essas derrotas na Câmara. Parte das lideranças indígenas, de analistas políticos, falam que o governo ficou de mãos atadas, fez pouco para evitar esse fim. E tem ainda o fato de a Câmara estar pressionando o governo para barganhar mais influência política na gestão. Qual é a sua visão a respeito da ação ou inação do governo?

Para mim, são as armadilhas. Não é porque o governo é bonzinho, é porque está sofrendo muitas pressões, sejam internas ou externas, e faz isso. Mas ele sabe que tem um grupo, que existe um sistema que não compactua com os direitos indígenas. O parlamento é dominado por latifundiários, pelo agronegócio, por grileiros, representantes desses grupos. É o Estado brasileiro que é assim. O  governo está ciente disso. O que me impressionou foi um deputado petista [Zeca do PT, deputado estadual do Mato Grosso do Sul] chamar um indígena [Eloy Terena] que está manifestando a nossa opinião contra o marco temporal de 'advogadozinho'. Ele não é capaz de falar a mesma coisa para os advogados do agronegócio, dos grileiros, dos garimpeiros. Daí a gente vê que o governo não é o que imaginamos, bonzinho para os indígenas e meio ambiente. É claro que tem deputados do PT que entendem a causa, querem contribuir, construir, mas a maioria do parlamento é construído por representantes desses grupos sociais. 

O senhor falou algumas vezes que o  governo não é 'bonzinho'. Essa gestão difere da anterior, porque retomou as demarcações, criou o MPI e se comprometeu a reestruturar a política indigenista. Por outro lado, foi criticada por inação nessas votações na Câmara e já teve representantes demonstrando apoio a projetos com potencial para afetar indígenas, como a exploração de petróleo na foz do Amazonas e a de potássio em Autazes. Apesar do pouco tempo, o senhor já se considera decepcionado com o governo?

Essas demarcações que saíram não foram desse governo. Ele apenas assinou o que não estava sendo assinado. Não é que ele empenhou, que fez. Assinou, porque estava na mesa. A Dilma deveria ter assinado. O Temer deveria ter assinado. O Bolsonaro declarou abertamente que não demarcaria terra. Lula está agindo agora nessas questões que estão explodindo agora, como o caso dos Yanomami, porque precisa responder a isso. Não é uma política de Estado, está apenas respondendo a questões imediatas. Queria ver muito a política, o meio ambiente, a questão dos povos indígenas, como política de Estado, não de governo. Portanto, Lula faz isso, demarca, é sua obrigação, daqui a pouco vão surgir outras demandas e vamos ver se ele vai assinar. Agora dificilmente se o marco temporal for aprovado, ele não vai demarcar. Pelo contrário, se isso for aprovado, corremos sérios riscos de terras demarcadas serem revistas. 

Nessa esteira da relação entre governos e indígenas, o governador Wilson Lima se aproximou mais de lideranças do Amazonas no início desse ano. O ponto de partida foi a eleição da Maria Baré para a presidência da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). Ela encabeçou essa articulação, garantindo, inclusive, a nomeação de um indígena do movimento para a Fundação Estadual do Índio. Qual a sua avaliação sobre essa aproximação com o governador?

Os povos indígenas, por meio das suas organizações, sempre pautaram o diálogo. Sempre estiveram abertos para propor as políticas públicas. E percebemos que o nosso governo estadual vai de acordo com o sistema que está aí. Na primeira gestão, ele esteve afinado com o Bolsonaro. Agora mudou o governo e ele tenta afinar com esse governo, mas também a gente percebe muita pressão externa para que ele comece a olhar isso, senão não vai ter financiamento, outras possibilidades. O que me preocupa sempre é criar espaços para indígenas como maquiagens. Tem de ser política de Estado. À  medida que você não dá orçamento é o mesmo que nada. Os indígenas não querem gabinete de emprego, mas uma política de Estado.

Perfil

Nome: João Paulo Lima Barreto

Estudos: Graduado em Filosofia e Doutor em Antropologia Social (Ufam)  

Experiência: Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi. Membro do SPA - Science Panel for the Amazon (Painel Científico para a Amazônia), da Academia Brasileira de Ciência.

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